quarta-feira, abril 30, 2008

Ninho de Serpente


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.Filhote de serpente toma o primeiro fôlego
após romper a casca do ovo
Foto: © Daniel De Granville, 2008



Nos cursos e palestras que sou convidado a proferir sobre fotografia de natureza, gosto de enfatizar exemplos práticos com base na minha vivência, em detrimento de conceitos puramente técnicos. Afinal, na maioria das vezes estes são facilmente encontrados nos livros ou na internet, enquanto experiências pessoais são menos difundidas.

Um dos assuntos que abordo refere-se à importância de se manter constante contato com pessoas que vivem perto de ambientes naturais, cujo conhecimento é de grande valia para quem quer otimizar uma saída fotográfica. Afinal, quem está junto à natureza todo dia sabe muito mais sobre as plantas ou os hábitos dos animais daquela região. E assim começa a história de hoje, que vem confirmar esta idéia.

Há cerca de dez dias recebi um e-mail do proprietário de uma chácara vizinha, onde ele contava a história de uns “ovos desconhecidos” que apareceram sob as pedras às margens da estrada que passa perto de sua casa. Quem os descobriu foi a filha de seu caseiro, enquanto aguardava o ônibus para ir à escola, já que os tais ovos estavam bem debaixo do local onde ela costuma se sentar e esperar. Junto à mensagem, uma foto tirada por ele e um comentário: “acho que são de cobra...”.

Respondi à mensagem dizendo que tinha muito interesse em fotografar a cena, em especial quando os filhotes (seja lá do que fossem) estivessem nascendo. E assim comecei o trabalho investigativo, outro dos assuntos que ressalto em minhas falas: repassei a foto para alguns colegas herpetólogos (especialistas em répteis) e comecei as perguntas. Do que são? Quanto tempo levam para eclodir? Há risco em ficar perto deles (para nós e para quem estiver lá dentro)? Uma simples foto era muito pouco para responder todas estas questões, portanto a história ficou no ar. Mas uma coisa já estava certa: eram ovos de serpente.

Segunda-feira pela manhã, feriado nacional, acabo de chegar ao meu escritório do outro lado da cidade e o vizinho me telefona. “Daniel, está nascendo – e é cobra mesmo! Você vem fotografar?!”. Era uma chance imperdível, então mesmo com trabalho acumulado e a tentação de realizá-lo em ritmo de feriado, adiei os compromissos e voltei pra casa, retornando 12 km para buscar as câmeras e seguir para o local. Chegando lá, todo mundo curioso, em parte pelo privilégio de estar presenciando este fenômeno natural, em parte devido à tralha toda que eu tirei do carro. Finalmente eu ia ver o tal ninho de cobra!

Quando tiraram a pedra que os escondia, lá estavam nove ovos branquinhos, um deles meio rachado. “Uma já estava nascendo, mas se assustou com a gente e voltou pra trás. É cobra-coral, deu pra ver direitinho os anéis vermelhos, brancos e pretos”. Apesar de meio frustrado, decidi tirar fotos do ninho – só aquela cena já era bonita o bastante para merecer registros. Enquanto fotografava, sentia meu computador no escritório me chamando e avisando sobre o tanto de e-mails que estavam dentro dele esperando minha resposta...

Vista geral do ninho no momento de eclosão de um dos nove ovos
Foto: © Daniel De Granville, 2008


“Daniel, veja o que você quer fazer, eu vou tirar isto daí assim que nascer o primeiro filhote. Vou levar para outro lugar e soltar, que eu não sou de matar bicho. Mas se eu deixar aqui, é perigoso para as crianças que esperam o ônibus e é perigoso para as cobras, já que está na beirinha da estrada e porque boa parte dos caseiros por aqui não perdoa uma cobra invadindo sua varanda”.

Lá veio ele com um tipo de aquário, já com o fundo forrado por terra, umas pedras destas que cobra adora esconder embaixo e um pouco de capim. “Você quer levar pra tirar suas fotos e depois soltar as cobrinhas em um lugar seguro?”, ele me perguntou. Pensei, ponderei e aceitei a oferta. Primeiro, pois como biólogo sabia que neste estágio avançado de desenvolvimento dos ovos, manipulá-los cuidadosamente não causaria danos aos filhotes lá dentro. Segundo, pois estava bem assessorado por especialistas que podiam me orientar sobre como proceder nas próximas etapas. Terceiro, porque certamente daria mais chances de sobrevivência àquelas serpentes se cuidasse delas de forma mais criteriosa. Finalmente, pois como fotógrafo sabia da importância – tanto do ponto de vista artístico como de registro biológico – em eternizar este evento.

Assim fui pra casa (o computador ainda me chamando...) e comecei a agir. Estudei o melhor ângulo, a iluminação adequada, tudo levando em conta também o conforto das criaturas que estavam se formando lá dentro. Fiz uns cálculos e programei o disparador da câmera para tirar uma foto a cada intervalo de tempo. Testei tudo várias vezes, ativei o sistema e corri para o escritório, deixando o equipamento trabalhar sozinho e as cobrinhas idem.

Chegando lá, a primeira coisa que fiz foi procurar o colega e amigo Renato Bérnils, zoólogo que me deu a primeira assessoria quando toquei no assunto inicialmente. Eu queria saber se o ambiente estava adequado para o bem estar dos animais, se havia uma previsibilidade sobre quanto tempo demorariam a nascer, se há um período do dia mais propenso para a eclosão, etc. Precisava saber de tudo isto para me programar, afinal os trabalhos paralelos continuavam e eu precisava garantir boas fotos sem incomodar muito os filhotes. Já de cara, Renato me confortou: “Vocês tomaram a atitude certa, sem dúvida, pois do contrário esses bichos não teriam chance alguma”. “Excelente!”, pensei.

A esta primeira mensagem, seguiu-se uma troca frenética de e-mails com detalhes: eu enviava relatos e fotos, Renato respondia com alguma informação científica curiosa. Coisas do tipo: “muitas cobras pequenas podem ‘escalar’ vidros de terrários se tiverem acesso a água; com o corpo molhado elas conseguem aderência ao vidro e vão subindo na maior cara-de-pau. Costumo dizer que as cobras são especialistas em fugir do cativeiro, e por isso sempre recomendo tampas bem fixas e pesadas, sem fresta alguma”. Ótimo... Como eu ia tampar o terrário se tinha de manter a caixa aberta por causa da câmera?! Enfim decidi arriscar, já que a tralha toda – ovo, cobra, tripé, câmera, flash – estava isolada em um cômodo protegido da casa, com a fresta sob a porta devidamente fechada com um pano para evitar surpresas. E meus gatos curiosos para saber o que tinha dentro daquela sala, sem poder entrar...

Assim os dias se passaram. Várias vezes o aglomerado de ovos ficou horas e horas sem qualquer ação, e as centenas de fotos tiradas naquele período eram absolutamente iguais. Em outras ocasiões, a atividade era intensa e a câmera não dava conta de captar todas as boas cenas. Eu acordava no meio da madrugada para trocar as baterias e cartões de memória, sempre na penumbra para não incomodar o ninho. Ou então tinha de ir para casa no meio do dia para repetir este processo.


Estúdio improvisado em um cômodo da casa
Foto: © Tietta Pivatto, 2008


Já estava me esquecendo: até este momento não havia certeza sobre a identificação precisa da espécie. Ao contrário da maioria das serpentes peçonhentas brasileiras, cuja identificação é relativamente simples para quem tem conhecimentos básicos sobre o assunto – como no caso das jararacas e cascavéis – as chamadas “cobras corais” (nome popular dado às espécies com padrão de cores composto por anéis vermelhos, pretos e brancos) são mais difíceis de distinguir entre “verdadeiras” (peçonhentas) e “falsas” (inofensivas).As primeiras imagens permitiam uma quase garantia de que não eram corais verdadeiras com seu poderoso veneno. Mas “quase” ainda deixa uma margem de preocupação... Felizmente as corais são muito calmas e nada agressivas, porém em mais de uma noite tive sonhos de que as previsões do Renato haviam se concretizado, que as ditas cujas tinham fugido do terrário e povoado a casa. E se fossem verdadeiras?!?! Logo veio sua resposta, baseada nas fotos detalhadas que fiz de um filhote: “a espécie é Oxyrhopus guibei (Colubridae, Xenodontinae, Pseudoboini), absolutamente inofensiva”. Mais um alívio! Eram falsas corais...

Esta espécie é bastante comum no estado de São Paulo, sendo mais ativa durante o crepúsculo e à noite, quando sai em busca de presas como roedores silvestres, lagartos e filhotes de aves, geralmente mortos por constrição (esmagamento, de forma semelhante às sucuris). Sua semelhança com as corais verdadeiras (gênero Micrurus) é uma ótima e eficiente estratégia de defesa, já que assusta seus potenciais inimigos devido à semelhança com algo perigoso. Outra curiosidade que o Renato nos trouxe é que “para cortar a casca membranosa do ovo, fazendo aquela abertura que vocês registraram em todos os ovos, as cobrinhas nascem com uma estrutura pontiaguda na ponta do focinho, acima da abertura da boca. É uma fina lâmina triangular, apropriadamente chamada de ‘egg-tooth’, que rompe a casca do ovo e logo cai do focinho da cobra”.

A história acabou (pelo menos para nós, já que as cobras ainda têm toda sua vida pela frente) na segunda-feira, 28 de abril, exatamente uma semana após o início dos registros no dia 21. E terminou muito bem: ao contrário do que acontece na maioria das vezes, todos os nove ovos originaram filhotes saudáveis. E todos ganharam a liberdade rapidamente, na medida em que iam nascendo. Sempre seguindo a orientação do especialista, conciliando com a realidade e preocupação dos moradores locais, todas foram devidamente soltas por mim e Tietta em uma área de mata ciliar, próxima ao local original mas longe de estradas e casas (apesar de não apresentarem perigo para os humanos, os humanos poderiam ser um perigo para elas).

Ganhando a liberdade
Foto: © Daniel De Granville, 2008


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Seqüência de eclosão dos ovos,
com suas respectivas datas e horários de nascimento.
Foto e arte: © Daniel De Granville, 2008
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