Pesquisas mostram como o canto de aves
pode ajudar a tratar nossa saúdeTexto: © Daniel De Granville, 2007-2009Foto: © Daniel De Granville, 2006 São seis e meia da manhã. Você ainda nem abriu os olhos, mas da cama já pode escutar a melodia de bem-te-vis, sabiás e tico-ticos vindo do outro lado da janela. Acordar com o som das aves pode ser trivial tanto no campo como em grandes cidades, mas ainda que para a maioria das pessoas esta riqueza sonora passe despercebida, para alguns cientistas o canto dos pássaros tem se tornado objeto de pesquisas que podem trazer boas novas à medicina humana.
Um pioneiro nestes estudos foi o zoólogo argentino Fernando Nottebohm, há 40 anos estabelecido na Universidade Rockefeller (EUA). Em 1983, suas pesquisas culminaram em publicações que afetaram o conceito científico secular de que neurônios não surgiam em indivíduos adultos. Analisando como canários-do-reino (
Serinus canarius) aprendem novas canções, sua equipe comprovou a neurogênese – nascimento de novos neurônios – em cérebros maduros destas aves. Frente à descoberta revolucionária, Nottebohm foi duramente questionado por parte da comunidade científica, mas o trabalho serviu como estímulo para estudos posteriores que comprovaram o fenômeno em animais evolutivamente mais próximos ao homem, como os macacos-rhesus.
A hipótese de novos neurônios se formando em adultos humanos daria início a uma nova era no tratamento de problemas neurológicos decorrentes de traumas acidentais ou doenças, desde o Mal de Parkinson e a esclerose múltipla até derrames cerebrais e o Mal de Alzheimer.
Fernando Nottebohm no seu centro de pesquisas
de campo em Millbrook, Nova York
Foto: CORTESIA ROCKEFELLER UNIVERSITY Enquanto Nottebohm prospera nas pesquisas, recebe prêmios acadêmicos e aparece em publicações prestigiadas como a National Geographic (uma foto dele com seus objetos de estudo estampa a edição de novembro de 2007 da revista), outras frentes relacionando humanos e canto de aves – desde ciência clássica até terapias alternativas – vêm se abrindo. É o caso do indiano Santosh Helekar, doutor em neurofisiologia que também deixou sua terra natal para viver nos EUA. Em junho passado, sua equipe do Hospital Metodista de Houston publicou artigo no periódico da Academia Nacional de Ciências dos EUA (PNAS) sobre respostas neurofisiológicas de mandarins a estímulos sonoros.
Os mandarins (
Taeniopygia guttata), originários da Austrália, são bastante utilizados em pesquisas neurológicas por possuírem em seus cérebros áreas bem definidas relacionadas ao canto. Por meio de técnicas de ressonância magnética, os pesquisadores compararam a resposta cerebral destas aves quando seletivamente submetidas a sons diversos. Em todas as ocasiões notou-se que o hemisfério direito era capaz de discernir melhor os sons. “
Não sabemos exatamente o que acontece no cérebro humano quando um paciente gagueja ou apresenta outros distúrbios da fala. Mas se compreendermos como os sons são seletivamente processados por mandarins, talvez possamos utilizar estes achados para tratar tais pessoas”, afirma o Dr. Henning Voss, primeiro autor da publicação. O fato de que alguns indivíduos de pássaros canoros jovens repetem insistentemente determinados trechos do canto aprendido com os pais – uma forma de gagueira, na opinião do Dr. Helekar – pode ajudar nesta busca por pistas que levem à melhor compreensão dos mecanismos envolvidos no gaguejar humano.
Outro achado que remete ao pioneirismo de Nottebohm, ainda que não diretamente ligado à saúde humana mas dentro do campo da fala, foi publicado em abril de 2006 pelo Dr. Timothy Gentner, do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia. Estudando estorninhos-europeus (
Sturnus vulgaris), Gentner comprovou que eles dominam a recursividade, componente gramatical até então considerado exclusivo da linguagem humana. Trata-se da capacidade de construir frases dentro de frases infinitamente, como no exemplo “o pássaro, que era amarelo, vinha à minha janela, que eu deixava sempre aberta, todos os dias”. Mais uma vez, os pássaros indicam a necessidade de se revisar de um conceito científico consagrado – exatamente como no caso da neurogênese.
O canto das aves aparece também em temas controversos dos quais, afinal, alimenta-se a ciência. Nas terapias alternativas, o médico inglês William Bird, da entidade ambiental Natural England, defende seu uso e para reforçar esta posição cita estudo publicado em 2003 no respeitado periódico Chest, da Sociedade Americana de Pneumologistas. Nele, os autores afirmam ter reduzido significativamente os níveis de dor durante broncoscopias – uma prática altamente invasiva para exame dos pulmões – expondo os pacientes a cantos de aves e imagens de natureza, ao invés de usarem medicamentos tradicionais.
Fernando Nottebohm afirma não acreditar na eficácia de tais práticas, mas parece que em Liverpool o estudo causou entusiasmo. O renomado Hospital Infantil Alder Hey, um dos maiores da Europa com mais de 200 mil atendimentos por ano, firmou em setembro último parceria com o colecionador de sons naturais Chris Watson. O projeto inclui a aplicação do canto das aves do Parque de Springfield – tanto vindo pelas janelas como pelos tocadores de MP3 dos pequenos pacientes – como método auxiliar na sua recuperação.
Chris Watson especializou-se em gravar
sons de natureza para fins terapêuticos
Foto: DIVULGAÇÃO | CHRISWATSON.NET Já no Brasil, que com mais de 1800 espécies ostenta a segunda maior diversidade mundial de aves, ficando atrás apenas do Peru, não há estudos científicos conhecidos que envolvam cantos e saúde humana. Por enquanto esta relação entre homens e vozes de aves limita-se a iniciativas pessoais e isoladas como os CDs de paisagens sonoras do engenheiro paranaense Beto Bertolini, além de pesquisadores e entusiastas que se dedicam à bioacústica – caso do francês Jacques Vielliard e do ugandense Jeremy Minns, ambos radicados há décadas no Brasil. Para o Dr. Nottebohm, este aparente paradoxo – abundância de material disponível versus total ausência de trabalhos científicos – pode ser devido à simples carência de financiadores para tais estudos. “
O desejo de ver pesquisas realizadas sempre esbarra na necessidade de quem irá pagar por elas”, conclui.
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Este artigo foi originalmente escrito por mim no final de 2007, como trabalho de conclusão de uma das disciplinas da pós-graduação em Jornalismo Científico (Labjor/Unicamp), e agora atualizado com algumas novas informações.
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